15.5.12

Os perigos do invisível


Recentemente, eu comecei a me envolver mais ativamente em debates relacionados a cinofilia. Provavelmente por estar tanto tempo longe desses debates, eu fui pega de surpresa por como as coisas que eu disse foram recebidas com desconforto. A reação das pessoas me levou a pensar melhor o que na minha posição causou tanto desconforto; o bom dos debates é que te instigam a refletir. Será que eu estava enxergando além do que deveria ou será que não consegui me expressar bem?

A reflexão me permitiu ver algumas coisas mais claramente. Hoje, tentarei explicar melhor minha posição. Espero conseguir mostrar porque eu acredito que as coisas estão bem mais sérias do que parecem. A minha posição, no entanto, é bem simples e pode ser resumida em uma frase:


"As coisas que você não pode ver são mais importantes que as coisas que você pode ver"


Essa frase era a idéia central de Dan Belkin, criador de Salukis de caça, ao discutir sobre estrutura. Mas ela também pode ser aplicada a muitas áreas da cinofilia.


Belkin possuía um exemplo clássico, simples e muito interessante. Ele dizia: "o padrão do Saluki diz que o cão deve possuir 'olhos de escuros à cor de avelã, brilhantes, grandes e ovais, mas não proeminentes', mas não diz se o Saluki deve conseguir enxergar". Obviamente, Belkin não se referia a Salukis cegos. Os olhos são órgãos bastante complexos e o "espectro da visão" não se resume a enxergar ou não enxergar. Para cães que caçam a partir desse sentido isso é especialmente importante.

O criador exemplificava com o caso de uma fêmea que conseguia ver lebres que estavam a mais de 300 metros de distância. Todos seus outros Salukis nem se davam conta da presa. Como seria possível avaliar a capacidade funcional desses animais fora da situação de caça? E isso se estende para todas as características descritas nos padrões de raça.



Mas a estrutura não é a única área em que "as coisas que você não pode ver são mais importantes". Na verdade, quando li essa frase pela primeira vez, achei que Belkin estaria se referindo a genética
.


Não é difícil entender porque a genética depende imensamente de coisas que não podemos ver e porque essas coisas são tão importantes. A maior parte das características de nossos cães dependem de genes que não conseguimos isolar, ou ainda, mesmo que tenhamos isolado esse gene, podemos não compreender como ele interage com o resto do genoma.



Será que a cinofilia está pronta para permitir que a
ciência ajude a superar sua cegueira?
Mas não estamos completamente no escuro. Os conhecimentos disponíveis em genética nos permitem avaliar a criação de cães com muito mais cuidado para que, no fim, não acabemos dando um tiro no próprio pé.


Quando penso em criação de cães, temo que os criadores não estejam levando a sério aquilo que não podem ver. Hoje, somos capazes de ver as consequências das criações que cometeram o mesmo erro, mas muitas dessas criações estavam, de fato, desafiando a escuridão. Talvez ainda não possamos ver tudo claramente, mas podemos ser míopes mais preparados.




A ciência deveria ser recebida como uma ferramenta pelos criadores, um par de óculos que permitisse, progressivamente, descobrir o que é que estamos fazendo.

Em todas as esferas do desenvolvimento humano já houveram práticas que foram tão celebradas, que não pareciam poder ser superadas. A roda, a penicilina, a escravidão. Mas a verdade é que nosso constante desenvolvimento condena essas mesmas práticas à obsolescência. O progresso não promete apenas bons frutos, mas não podemos deixar de caminhar em frente. O futuro trará coisas muito importantes, mas que ainda não somos capazes de ver.
 





"Não considere nenhuma prática como imutável. Mude e esteja pronto a mudar novamente. Não aceite verdade eterna. Experimente" (B. F. Skinner)

9 comentários:

  1. Oi Carol realmente é complicado criar, ainda mais se tivermos como guia o resultado das expos de estrutura e blz que não se preocupam com o que não se pode ver e sim só com o que se vê!
    Ando triste e com vontade de parar de criar pois não conseguimos fazer o melhor para raça, fica inviável e nas poucas vezes que conseguimos dispor da ciência para ajudar a raça deparamos com criadores que "estragam" a raça muitas vezes por desinformação ou outras com má fé mesmo!
    Acho que a maioria dos criadores são gente que acasala com o cachorro do vizinho, pensando em $ e não em melhorar a raça. No Brasil a situação ta triste e em breve largarei td e irei apenas me divertir com meus cães!
    Para a coisa melhorar necessitamos:
    Provas de trabalho p selecinoar matrizes e padreadores. Testes genéticos obrigatorios nos reprodutores ex CEA nos Bcs, verificação de ninhadas e que só criadores pudessem acasalar seus cães, como nada disto acontecerá, melhor será abandonar td e curtir os dogs!

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  2. Assunto delicado...
    Mas em exposições de beleza, o que eu prefiro muito mais o termo em ingles "conformation show", o juíz não tem como julgar o que ele não vê. Na minha opnião o bom andamento da raça cabe a bons criadores, clubes da raça bem desenvolvidos que exigam testes de saúde e de trabalho, como por exemplo a APRO para os rottweillers, que EXIGE chapa boa de displasia pro teu cachorro, alem de organizar provas de trabalho e verificar ninhadas. Isso foi uma reviravolta em uma raça que agora possui bons cães de saúde e temperamento, dá todo o respaldo pra alguem que queira comprar um cachorro registrado e tals.
    Uma vez estava lendo um livro sobre julgamente de estrutura de cães e o autor falou algo interessante, ele tinha uma situação onde haviam dois cães praticamente iguais em pista, um deles com uma boa traseira mas uma cabeça ruim e o outro o contrário, boa cabeça, mas traseira ruim. No livro ele falou das possibilidades de julgar aqueles dois cães, uma delas era que ele sabia que, por exemplo, conseguir uma traseira boa era mais fácil geneticamente do que uma cabeça. Foi a única vez que vi genética sendo aplicada ao julgamento de cães. Mas logo em seguida ele disse que pessoalmente ele julgaria qual falta impossibilita mais o cachorro de efetuar a sua funçao, então provavelmente iria escolher o cachorro com a cabeça ruim.
    Eu acho que as exposições tem a sua função numa criação, desde que o criador saiba usar essa função. O futuro com bem estar das raças, na minha opnião, reside em clubes de raça bons, com o interesse genuíno nos cães e não em apenas realizar especializadas, e também em criadores vanguardistas, que vão contra o sistema por mais que vez ou outra tenham que descartar cães considerados lindos mas que não passaram no seu critério de saúde ou temperamento.

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    1. Pois é Lu! Eu tendo a não achar as exposições necessárias. Elas podem ser uma ferramenta útil mas, na minha opinião, são dispensáveis. Do jeito que elas são hoje, eu as considero absolutamente nocivas. Mas poderia ser diferente.
      Eu também acredito que o caminho para bons frutos na criação de cães estão nos clubes de raça. É uma entidade que deveria promover boas práticas de criação, além de divulgar conhecimentos e promover discussões.

      Agora, a questão da genética, eu me preocupo muito mais em como as criações estão deixando de lado a questão da saúde em genética, mais do que a conformação. Não porque seja um assunto mais importante, nao considero que sejam questoes separadas, mas apenas porque é menos divulgado. A conformação é algo que podemos ver e mesmo assim está ultrapassando vários limites do absurdo. Imagina aquilo que não podemos ver? Mas o cuidado com as duas é absolutamente crucial, porque não são coisas diferentes.

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    2. Na verdade vejo sempre mais e mais criadores e futuros proprietários preocupados com a questão de doença hereditárias, tanto como os clubes da raça do EUA investem em pesquisa, principalmente aquelas que visão isolar e indentificar genes responsáveis pela doença.

      Sou bastante otimista e acho que as coisas tem ido pelo lado bom, tanto que aconteceu o que aconteceu no crufts esse ano.

      Uma curiosidade: O fisioterapeuta dos nossos cães correlaciona jarretes de vaca com problemas de coluna. E de fato, todos os nosso cães que possuem jarretes tortos tinham um ou outro problema de coluna, que graças a experiência desse veterinário que também é criador, são tratados desde cedo. É uma falta prevista em todos os padrões que indica um problema não visível, acho isso interessante.

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    3. Com certeza Lu! Mas acho que as doenças hereditárias como CEA e displasia são apenas uma parte da equação. O que tem me preocupado mais nos ultimos tempos (porque ninguem discute sobre essas coisas) é uma questão de variabilidade genética em todos os sentidos. Doenças auto-imunes, fertilidade, longevidade, esse tipo de coisa.

      Eu também acho que as coisas vão melhorar bastante, mas só penso assim quando me afasto e olho para todo o quadro de uma certa distância. acho que preciso me lembrar de fazer isso com mais frequencia, hehehehe.

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  3. Isso aqui é um exemplo digno de um regulamento de um clube de raça: http://www.apro.com.br/teste/regulamentos/8regul.asp#Cap._3_-_DA_CRIA%C3%87%C3%83O_-_Exig%C3%AAncias_ao_exemplar_nacional_e_importado,_para_reprodu%C3%A7%C3%A3o.

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  4. Excelente post, Anna!! E como já foi mencionado aqui, infelizmente o ORGULHO e a VAIDADE dos humanos se sobrepõem à saúde e bem-estar dos cães. As pessoas e/ou criadores entram em uma sangria desatada de sair reproduzindo seus cães, não importa com "o quê", e esquecem de perceber o quanto aquilo pode ser prejudicial para o cão e, quiçá, para o futuro dono, o qual pode abandonar o bichinho pelos prováveis problemas que virão a aparecer e, de igual absurdo, CRUZÁ-LO e passar o problema pra frente -- pelo mesmo motivo das pessoas e/ou criadores acima mencionados. Pior ainda é quando a aquelas que faziam o discurso do "isso é um absurdo" e, hoje, para defender interesses pessoais, acham "o maior barato" e não veem nada demais... Fazer o quê? A mim, só me resta olhar de longe e ficar calada. Se eu falo, a resposta que escuto é: "Deixa pra lá, o problema não é seu".

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  5. Se eu pudesse, usaria o Ctrl+C e Ctrl+V no comentário da Vanessa. rs Ela disse tudo!

    Agora no quesito exposições. Acredito que elas deveriam servir como uma luz para os criadores ainda jovens e inexperientes...deveriam seguir os padrões, promover a boa saúde e temperamento, tudo isso deveria ser avaliado. Mas na real as exposições não servem para NADA, só para passar uma visão negativa, daquilo que é errado fazer com um pobre animal. Me entende?!

    As pessoas também me "crucificam" por valorizar os animais, e querer o melhor para eles, uma criação responsável. Pra ter uma ideia, ainda tem muuuuita gente falando que eu não deveria ter castrado a Sofia e que era pra eu ter "colocado" ela em cria com um cachorro ai...¬¬

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  6. Mais uma vez excelente postagem Anna! Infelizmente hj só se dá valor aos cães de boa estrutura, isso é tudo para a maioria dos criadores. Genética fica de lado, temperamento mais ainda. Não estou lá muito "por dentro" de cinofilia ou coisas do tipo, mas gosto de acompanhar algumas discussões e de procurar saber mais, e na minha opinião, criação virou um significado de orgulho e vaidade, como disse a Vanessa. O objetivo, muitas vezes, não é produzir animais de boa qualidade genética, saúde e temperamento, mas sim produzir animais para mandar para exposições e conquistar mais e mais títulos. Basta ver o que está acontecendo com muitas raças, cada vez mais repletas de problemas genéticos, doenças, etc.

    De um lado temos a evolução na cinofilia, criadores mais preocupados com as raças que criam e seus problemas genéticos; por outro temos os maus criadores que estão sempre piorando as coisas, e que infelizmente só continuam agindo pois há quem compre filhotes deles. Acho que um bom começo para tentar mudar um pouco essa situação é conscientizar os compradores, desestimulando a compra em canis irresponsáveis. Mas mudar o nosso "sistema" de criação é algo bem mais complicado na prática.

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