11.11.22

falando com cães e montanhas

 […] desse lugar que para nós sempre foi sagrado, mas que percebemos que nossos vizinhos têm vergonha de admitir que pode ser visto assim. Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: “isso é algum folclore deles"; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: "não, uma montanha não fala nada". […] - trecho de “Ideias para adiar o fim do mundo” de Ailton Krenak

Eu estava relendo esse livro lindo e esse trecho me remeteu aos treinos recentes que eu tenho cocriado com o Kvothe. Eu tenho pensado muito nisso. De fora, um espectador distraído não notaria que tanta coisa mudou. Mas nossa, como mudou. No início (muito frustrante, diga-se de passagem), eu tentava encontrar meios de ensinar o que eu queria pro meu cão sem levar muito em consideração o que ele achava disso. É esquisito porque eu não percebia que eu fazia isso na época. Mas ao enfrentar um problema eu me debruçava sobre os planos, sobre o método, como eu quebraria aquele comportamento em pedaços menores. Tudo isso, estando de costas pro meu cão. Como se o treino fosse algo que eu fizesse à ele, para ele e não uma coisa que construímos juntos. Não me ocorria que eu podia ter perguntado diretamente qual era o problema que estava rolando. Mas naquele tempo ainda que eu não acreditasse nisso, eu agia como quem diz "não, um cachorro não fala".

Hoje, eu sinto que meus treinos são convites, são perguntas. “E aí? O que você acha disso?” e ele tem total autonomia pra poder responder, da sua própria maneira, "nossa, achei uma bosta”. E mudamos o treino, eu faço novas perguntas. Diante de problemas, as soluções não vêm de eu me debruçar sozinha sobre eles e trazer respostas prontas (e ficar frustrada que ele não apreciou quão genial é meu plano). Eu sugiro mudanças e paro pra escutar as respostas.


Screenshot de uma das nossas sessões cocriadas favoritas que
 eu gosto de chamar de "que porra tá acontecendo aqui?"


5.9.19

olá, querido diário

tem muita coisa mudando na minha cabeça em relação ao treinamento dos meus cães. É curioso voltar pra cá e ver que havia um post no rascunho que tentou - por dois parágrafos e desistiu - articular pontos que finalmente sinto que encontrei um caminho. Ainda com muito a ser caminhado, mas há uma direção. Volto pra cá porque tentar articular ideias na minha cabeça, sozinha, me faz dar muitas voltas sem sair do lugar. Não vou divulgar que o blog está sendo movimentado - até que eu mude de ideia - mas vou escrever com o interlocutor que estiver aí, pedindo socorro pra alinhar todas as ideias soltas aqui dentro.

31.7.16

sobre olhar, sobre aprender

Alerta: o texto de hoje é longo e confuso porque o texto de hoje sou eu.

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Faz alguns meses, eu fui convidada para dar um curso de Shaping e Agility em Recife. Eu estava em casa quando desliguei o telefone depois de conversar com o organizador sobre as inúmeras possibilidades para um curso desse. Quando desliguei, empolgadíssima, olhei para a Kia. Minha filhota estava com um ano de idade e sequer sabia deitar sob comando. Ela havia visto um túnel duas vezes na vida e as primeiras tentativas de ensinar as bases do salto haviam sido desastrosas. Pensei na Dory, a única cachorra com quem tive algum resultado em pista e que nem foi treinada por mim. Meu estômago deu um nó. Meu deus. O quê que eu vou fazer lá?  

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É engraçado olhar pra trás e perceber quantas coisas já estavam presentes desde sempre e demoramos tanto tempo para notar. Pensando agora, eu não me lembro de um período na minha vida em que aprendizagem e ensino não fossem os meus temas favoritos. Vasculhando a infância, os hobbies, a escolha profissional, eu vejo que esses interesses sempre estavam lá, guiando minha trajetória.

Durante toda essa jornada, de lá até hoje, dediquei a maior parte do meu tempo a entender como a interação entre organismo e ambiente produziam todos os diferentes comportamentos que vemos nos seres vivos. Dos problemas de comportamento ao desempenho de alta performance, dos hábitos saudáveis ao sofrimento psicológico. De todas as coisas que descobri, teve uma que mudou totalmente tudo que eu havia aprendido até então e que continua fazendo isso até hoje. Eu descobri, numa conversa despretenciosa com veteranos, que olhar, observar, é treinado como qualquer outro comportamento. Observação também é aprendida. 

Pare para pensar um pouco no que isso significa. Para a maioria dos humanos, olhar é um comportamento tão básico que media praticamente todos os outros. Nós não sabemos como comer, como interagir com as pessoas, nem como andar na nossa própria casa se não pudermos nos basear no que estamos vendo. O ver não é algo automático, que vem de fábrica quando temos olhos funcionais, como a câmera de um celular. Onde olhamos, no que focamos, o que percebemos, todos esses são comportamentos, que são treinados a partir de reforço, que podem ser punidos, ou sofrer extinção, como qualquer outro comportamento.   

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A parte mais ansiogênica de ministrar um curso é se imaginar lidando com as dificuldades que inevitavelmente irão surgir durante os exercícios práticos. E se surgirem as mesmas dificuldades que eu tenho com os meus cães? E se surgir algo que eu não sei como lidar? Eles vão me descobrir. 

Eu coloquei toda teoria debaixo do braço para me proteger e fui. Fui para um dos melhores finais de semana que o agility já me proporcionou.

A primeira coisa linda que me aconteceu foi chegar e encontrar um grupo de pessoas que estava totalmente aberto e ávido para ouvir o que eu tinha a dizer. Ninguém estava ali para me avaliar, estavam ali para me ouvir e a parte de mim que temia ser percebida como impostora desapareceu. E, nesse ambiente de tanta abertura e confiança, pude vivenciar aquilo que, pra mim, faz o ensinar ser algo tão indescritível. A oportunidade de abandonar o meu olhar já enviesado, já viciado pelo meu contexto de vida, pelas minhas dificuldades e pela minha realidade e poder aprender tudo de novo, poder olhar para aquilo que eu achava que já sabia de um ponto de vista completamente diferente.

Existe algo de muito especial em aprender a partir do ensinar. Que alguém abaixe as defesas e divida o desconforto do processo com você, que te permita compartilhar o olhar de um ângulo que você jamais teria acesso, não sei se existe demonstração maior de confiança do que essa.

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Uma lição se destacou dentre todas as outras. Enquanto as duplas iam praticando, eu estava livre para olhar. Sem conhecer nenhum contexto, sem me embaralhar nos invariáveis conflitos do processo de treino, eu conseguia observar claramente o que cada cão estava vendo, a que estímulos ele estava respondendo. Assim também, eu conseguia ver os condutores, reagindo sob controle de tantas outras coisas, tentando fechar várias equações e processar toda a informação enquanto o treino rolava. 

A parte mais estranha foi me perceber tantas vezes nesses condutores mas, estando muito mais atenta aos cães, sugerir e propor estratégias e soluções que eu mesma não costumava usar em meus treinos. Durante os dois dias de curso, o que eu mais fiz foi sugerir aos condutores que observassem seus cães, olhassem o exercício pela perspectiva deles, que processassem todas essas informações e consolidassem o planejamento antes de treinar. Enquanto eu explicava isso, havia uma voz no fundo da minha cabeça que estava maravilhada, como se estivesse relembrando algo esquecido há muito tempo. Caramba. Pode crer. 

Ás vezes, nos afogamos na nossa própria confusão. Nos tornamos incapazes de fazer, ou de resolver o problema, porque estamos tão imersos na correria do dia-a-dia, nos 150 vídeos que vimos no youtube, na pressa de estrear e, principalmente, tentando planejar nosso treino enquanto estamos nele. Ahnnn, tá, não tava esperando isso, o quê que eu faço agora? 

Nessas horas, esquecemos que o quê realmente precisamos não são mais métodos, mais soluções, mais ideias, mais vídeos. O que realmente precisamos é parar. Parar e pensar o quê estamos tentando ensinar e parar e olhar o quê o nosso cão está vendo. A verdade é que a solução tem que estar na nossa cara, afinal, ela tem que ser tão simples que até o nosso cão vai entender. O complicado mesmo é conseguir se desvencilhar de toda essa poluição mental e parar até encontrar. É um exercício da vida real de Onde está o Wally?

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O objetivo desse texto quando eu comecei a escrevê-lo era falar sobre o que eu pude reaprender durante o final de semana do curso. Porém, senti tanta necessidade de poder contar o quão especial foi essa experiência que mal ficou espaço para falar de agility. Ou talvez, essa seja a primeira vez, em muito tempo, em que eu falo daquilo que realmente é o agility. 

Deixo aqui hoje, desse meu jeito confuso e caótico, a gratidão que sinto por poder aprender as coisas que são importantes várias vezes, por encontrar pessoas sensacionais que me ensinem tudo de novo e de um jeito novo.

É bom estar de volta.

Muito obrigada, pessoal! Foto por Hugo Vanderlei

6.11.15

De que é feito um salto?

Estar em cima de um cavalo durante um salto mal
executado não é nada bacana. 

Quem já praticou Hipismo sabe que o todo o treinamento de salto de um cavalo é bastante longo, cuidadoso e - o mais importante - contínuo. Afinal, nesse esporte, esse é o único obstáculo presente mas, acima de tudo, não é só o cavalo que sente o baque de um salto executado com a técnica errada.


No entanto, quando olhamos para o Agility, apesar do exercício ser fisicamente o mesmo, a existência dos outros obstáculos acaba ofuscando a necessidade de um treinamento de salto cuidadoso. Treino de condução? Sim. Treino de técnica de salto? Não muito.

Ao treinar a Wish para saltar, eu acabei me deparando muito com essa questão. Quando começamos a levantar os saltos (ainda na categoria midi), a Wish tinha um salto muito inconstante. Muitas vezes levava as barras no peito, muitas outras saltava bem mais alto ou bem mais longe que o necessário. Como ajudar um cão que não tem um talento natural a saltar mais eficientemente? O que é que estava faltando na performance dela ou no nosso treino que não a ajudava a fazer o obstáculo com facilidade? O que eu faço e por onde eu começo?

Ao ensinar um cão a saltar, geralmente nos preocupamos muito com a altura do obstáculo. Isso porque a altura acaba sendo o componente do exercício mais visível para nós, no entanto, não é o único, nem de longe o mais complexo.

Mas que outros componentes são esses?


Ao saltar, o cão tem que analisar diferentes elementos para produzir um salto com técnica adequada e da forma mais eficiente possível. Para isso, eles devem calcular:

- a distância entre um obstáculo e outro (e quantas passadas ele poderá dar nesse espaço)
- a distância ideal para iniciar o salto (take off spot ou "ponto de lançamento")
- o ângulo de elevação que ele deve produzir com o corpo para ultrapassar o obstáculo 
- a altura do salto per se
- a direção que deve ir após o obstáculo (que deve ser calculada antes)
- todas as outras informações que o condutor está passando (sejam elas úteis ou não)

E tudo isso, em centésimos de segundo, quinze vezes durante uma pista de agility.

Reparem o esforço físico e a dificuldade dos movimentos. Saltar eficientemente não é simples.
Nas fotos, Bi e To de Silvia Trkman.

Nos próximos posts, vou discutir um pouco o que constitui uma técnica adequada de salto e como podemos ajudar nossos cães a dominá-la.

5.11.15

Sobre não ter medo de errar

O blog foi e voltou e eu continuei no mesmo tema. Que coisa.

Antes de parar de escrever no blog, eu estava tão bitolada no assunto da 'velocidade' que me afundei em diversas literaturas de Psicologia do Esporte para tentar pensar formas diferentes de entender esse conceito dentro do Agility.

O que os europeus, por exemplo, fazem de diferente para terem cães tão mais rápidos que os nossos? Eu não acredito, por exemplo, que essa diferença esteja no "material canino", ainda que existam cães mais ou menos velozes, não me parece provável que todos os cães bons estejam apenas em outros continentes.

Sendo assim, nos resta observar o que acontece de diferente durante o preparo de um cão agilista.

Acabou que o blog ficou de lado, com tantos projetos rolando simultaneamente na vida, mas recentemente encontrei esse vídeo no facebook de uma amiga eslovena. 

Existem diversos fatores que ajudam os cães a serem mais rápidos no Agility, ainda assim, o vídeo da Barbara deixa muito visível um desses fatores. Deixarei para que vocês vejam por si mesmos. 


Se olharmos relatos de atletas de alta performance, é muito comum encontrarmos falas sobre "não ter medo de errar". Em se tratando de alta performance, errar é sempre uma possibilidade, é um risco que deve-se correr para trabalhar no limite da velocidade, da precisão. Em um esporte em que cada centésimo conta, como no Agility, a vitória é decidida em todos esses pequenos limites.

Se o medo de errar é um fator tão decisivo para o desempenho de atletas humanos, por que seria diferente para nossos companheiros caninos?

Largo esse pensamento para vocês.

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"I've missed more than 9000 shots in my career. I've lost almost 300 games. 26 times, I've been trusted to take the game winning shot and missed. I've failed over and over and over again in my life. And that is why I succeed."
Michael Jordan


"Eu errei mais de 9000 lances na minha carreira. Eu perdi quase 300 jogos. Vinte e seis vezes, confiaram em mim para acertar o lance final vencedor... e eu errei. Eu falhei repetidamente na minha vida. E é por isso que eu sou bem-sucedido."
Michael Jordan (tradução livre)