24.4.12

O padrão de raça e práticas de criação

Nos últimos tempos tenho dedicado um espaço considerável do blog para discutir um tópico importante na criação de cães: a conformação física. Hoje - antes de me arriscar em temas ainda mais polêmicos da cinofilia - vou discutir o papel da estrutura na seleção de animais, seus objetivos, pressupostos e efeitos colaterais.

No primeiro post da série eu coloquei brevemente como a estrutura muita vezes representa algo terrível e prejudicial para aqueles que se empenham em produzir um cão de trabalho. Não é difícil compreender o porque quando olhamos para a situação atual da cinofilia.


Uma labradora de trabalho vs. ClearCreek BonaVenture Windjammer,
campeã da raça na Westminster 2012
A seleção de cães para exposição se justifica e baseia no seguimento de um documento supremo, o Padrão da Raça. Esse tipo de documento descreve, de maneira deveras superficial, como deve ser o temperamento e a aparência do exemplar típico da raça. Sendo assim, teoricamente, a criação de cães show é voltada para criar cães que se adequem a esse padrão a fim de poderem executar melhor suas funções originais. Infelizmente, uma rápida olhada nas fotos das Labradores e dos Clumber Spaniels denuncia o pouco sucesso desse tipo de criação para seus objetivos iniciais. 


Sedgehurst Tempest, exemplar de trabalho vs. Chervood Snowsun,
exemplar que teve o título de Melhor da Raça negado no Crufts 2012

Toda a ideia de seguir um dito padrão na seleção de uma raça é um problema interessante e intrigante. Quais as justificativas para tais práticas? Ou ainda, que evidências sugerem que as características descritas permitem que o cão típico seja um melhor trabalhador? 

Possivelmente em resposta à algumas dessas questões, os padrões de raça são documentos bastante amplos na maneira como descrevem as características de dada raça. Isso, a meu ver, é um ponto bastante positivo.


Para exemplificar podemos olhar um pequeno excerto do padrão da raça Labrador Retriever:

         "POSTERIORES
                    Aparência geral: bem desenvolvidos; sem inclinação para a cauda.
                    Joelhos: bem angulados.
                    J
arretes: bem descidos. Jarretes de vaca são altamente indesejáveis."

Se analisarmos os dois cães da foto com esse mesmo padrão podemos notar que ambos os cães estão adequadamente dentro do padrão da raça no quesito "posteriores". Pelo meu ponto de vista, obviamente. Mas há de se pensar, o que são posteriores bem desenvolvidos? Eu não sei, assim como não sei qual o limite que define um joelho bem angulado. Fica claro, portanto, como esse documento deixa muito espaço para interpretação.

Como coloquei, isso não é necessariamente um ponto negativo, pelo contrário! Cães trabalhadores de qualidade podem vir em vários "pacotes". Mas então por que a criação de cães batalha tanto para criar uma homogeneidade tão extrema nas raças? Já vi diversas entrevistas em que criadores avaliavam a qualidade de um plantel conforme a homogeneidade dos animais. Se não me engano, as pistas de exposição do tipo "criação" são justamente isso.

Joelhos bem angulados? Hmm, acho que passou do ponto!
Uma possível razão para a busca por essa homogeneidade são as próprias exposições de beleza e a utopia do cão "ideal". Tentar produzir vários exemplares que se assemelhem tanto quanto possível aos principais campeões da raça aumenta a probabilidade desses animais se saírem bem nos ringues. Mas surge o questionamento: dentro desse padrão amplo e interpretativo quem decide quais características serão valorizados e quais serão punidas? E por quê?

Afinal de contas, ao analisar brevemente o padrão da raça Labrador e da raça Clumber Spaniel não consigo ver como os exemplares de trabalho não serviriam como exemplos típicos de suas respectivas raças. Para mim, os dois exemplares mais moderados são animais bem mais típicos que seus colegas de exposição.


Mas também, há de se questionar, por que a homogeneidade é um problema? Por que não podemos produzir todos os animais dentro do mais alto grau de qualidade possível (supondo que esse grau exista e seja objetivo)? O principal problema da busca pela homogeneidade são as práticas a que criadores recorrem para atingir esse objetivo. Estou me referindo ao inbreeding (também conhecido como retrocruzamento) que consiste em acasalar animais aparentados para "fixar" determinadas características desejáveis daquela linhagem nos filhotes.


O inbreeding reduz a variabilidade genética e acelera a "fixação" de uma dada característica na população, o que é extremamente vantajoso para um criador que esteja selecionando uma característica específica como, por exemplo, mais massa muscular, pelagem ou até características comportamentais como o eye power de alguns cães pastores. 


No entanto, através desse mesmo processo, também é possível selecionar doenças de fundo genético como a urolitíase que afeta a maioria dos dálmatas, a syringomyelia que afeta boa parte dos Cavaliers ou as várias doenças oculares que afetam a raça Collie (CEA, PRA, Colobomas e por aí vai). É óbvio que tais doenças não são selecionadas de propósito, mas representam alguns dos efeitos colaterais do inbreeding.


Isso sem contar os problemas inerentes a conformação "esperada" em cada raça. Só para citar alguns exemplos temos: o ectróprio dos Basset Hounds, os problemas de pele devido as dobras do Mastim Napolitano (2) ou Sharpei, os problemas dentários e respiratórios causados pela braquicefalia nos Pugs, a péssima movimentação dos Pastores Alemães ou, o rei supremo do absurdo cinófilo, o Bulldog Inglês.
Nova Scotia: raça que sofre com as
altíssimas taxas de inbreeding


Mas ainda fica pior. Pois é.


O inbreeding não está relacionado apenas com a aparição de doenças específicas que podem ser facilmente controladas com exames de dna (como é o caso da 'Collie Eye Anomaly'). A perda da variabilidade genética resulta no fenômeno conhecido como depressão endogâmica que pode causar queda da fertilidade, longevidade, ineficiência do sistema imunológico, aumento da frequência de filhotes natimortos ou deformados, etc, etc, etc


Agora, deixo um excerto de uma entrevista do criador de Mastim Napolitano Enrique Graziano para a Revista Cães&Cia na edição de fevereiro de 2011. Vamos brincar de ligar os pontos...


"Os filhotes têm estrutura física forte, mas são frágeis em termos imunológicos. Ficam doentes e morrem com facilidade. Em geral, por verminoses. É fácil que sejam contaminados por giárdia ou eiméria. Hoje, dou a primeira dose de vermífugo com 7 dias de vida. Já perdi muitos filhotes. Atualmente perco menos, mas ainda perco.[...] Só quem cria Mastino muito leve e, portanto, fora do padrão obtém a procriação mais fácil"


Na entrevista, Graziano acusa a consanguinidade como principal causa de problemas na raça, inclusive em relação aos problemas de saúde dos filhotes.

Mas, não se iludam, a consanguinidade não é um problema só do Mastino, ou só das raças citadas nesse post. A consanguinidade é um problema para todas as raças criadas dentro um sistema de registro fechado como da FCI.

7 comentários:

  1. Comentário rápido antes de ler todo o tópico, é engraçado analisar o "equilibrio corpóreo" entre os 2 padrões. Qual é mais equilibrado, ou seja, tem distâncias próximas entre as divisões do corpo? É fácil de ver qual né...

    É um balanço perfeito dentro dos cães de trabalho. Me explica pra que mudar?

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    1. Pra que mudar, eu não sei. Já ouvi mil razões, nenhuma delas me convenceu.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Mais uma vez uma excelente postagem! Mas é uma pena pensar que tudo isso é apenas a ponta do iceberg do "submundo" da criação...

    O padrão ideal seria aquele que potencializasse ao máximo as capacidades de cada raça desenvolver suas funções (trabalho). O grande problema é justamente a falta de maiores detalhes nos padrões. Poderia ser utilizada como vantagem, mas por algum motivo os criadores sempre levam para o lado mais exagerado possível. O padrão do Pastor Alemão diz que ele deve ter a garupa (?) "caída", e os cães de trabalho seguem isso. Porém o que os criadores de estrutura fizeram: levaram demasiadamente ao pé da letra (como sempre), estragando totalmente a estrutura de um animal que deve ser ágil e rápido para defender seu território.

    E realmente fica a pergunta... Por que mudar tanto? Impossível não lembrar dos Borders agora. Me diz, desde quando a conformação dos BCs de estrutura é "ideal para o trabalho"?

    Desculpa pela comentário enorme, mas eu sempre me empolgo com esse assunto. Adoro falar (mal) de criação de cães! rsrs

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    1. Eu tenho minhas dúvidas quanto ao problema estar nos padrões. Talvez padrões mais específicos produzissem cães mais funcionais, mas não necessariamente mais saudáveis. Justamente por isso coloquei o problema do inbreeding no post porque essa busca pelo cão perfeito faz com que as pessoas cruzem muito dos mesmos cães e fechem as linhagens, isso é extremamente perigoso. E não só para cães show! No border, por exemplo, a criação de provas de pastoreio fez bem mais dano a variabilidade genética da raça do que a criação show. Por incrível que pareça.

      A única solução é criar para a função e para saúde. Mas para isso, os criadores tem que entender de genética e conformação e, infelizmente, criadores assim são raros.

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  4. Carol eu vejo que a Cinofilia de beleza e estrutura esta na contra mão em relação á criação por aptidão e trabalho! Eu prefiro um empregado mais "feio" ( perante aos padrões de beleza de uma entidade) mas que trabalhe do que um empregado "bonito" que não trabalhe ou que não desempenhe suas funções
    Por este motivo não coloco cães nas expos de beleza, acho perda de tempo , $ e falta de respeito com o cão e o criador!
    Dou dois exemplos, pastores alemães campeões de beleza e estrutura não tem bom desempenho para o trabalho, enquanto que o Pastor Alemão selecionado para trabalho tem cor e estrutura diferentes dos "bonitões", seriam colocados em ultimo lugar numa prova de estrutura e beleza, mas trabalham , que é o que nos importa realmente!
    Nos Border Collies idem, olham cor e pelagem, "angulações" e nunca observam instinto, que é o principal a ser observado. Um border de beleza mais parece um Golden R ou um Bernese, como um cão pesado poderia trabalhar horas na neve , na terra, no pasto ou na montanha com agilidade, velocidade e resistência? !
    Infelizmente os cães que a Cinofilia de beleza esta selecionando não ajudam a criação e na maioria das vezes atrapalham o desenvolvimento da raça!
    Não vou discutir muito aqui, sou ligado ao Kenel, pelo que fizeram em prol do agility mas acho que estamos, e digo isto no geral, no mundo todo, na contra mão e nunca selecionaremos bem pois as pessoas ficam confusas e acabam misturando os campeões de beleza e estrutura com cães que realmente trabalham e isto só traz prejuízo na seleção ! Sem contar os outros problemas inerentes a cada raça,problemas de saúde, ou genéticos que podem ser evitados através de controles e que são totalmente esquecidos numa pré pista de beleza. Ex um cão displásico pode ser campeão de estrutura. Deveriam exigir mais de um cão, conhecer mais do exemplar para outorgar algum titulo, pois estes títulos de beleza encorajam criadores a tornar seus "campeões" em padreadores!
    Infelizmente o buraco é mais em baixo da para escrever muito, discutir muito a respeito mas ta ficando impossível criar bem com tamanha falta de vontade de tornar a cinofilia mais técnica e menos politica!
    Provas de trabalho obrigatórias, verificação de ninhadas,provas de progênie etc seriam muito bem vindos e ajudaria muito na seleção de cães , mas estamos longe de pensar em poder contar com estas e outras ferramentas!

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  5. Carol, eu nem me meto mais a falar sobre o assunto... =( A gente fala, adverte, avisa... E as Ms acontecem assim mesmo. E é gente do meio que faz. Até misturando raças achando que está MELHORANDO a qualidade de... Sei lá o quê. Daí fico triste e decepcionada.

    Não consigo conviver ao lado dessas coisas. Daí aparecer cada vez menos no meio. Minha pistinha, se Deus quiser, vai ficar pronta ainda esse ano. E farei agility lá com minhas dogas. E quando visitar vocês. =)

    E, lógico, espero as visitas da galera de Sampa (aos pouquinhos, pelo amor de Deus! *rs*) no meu sítio quando estiver tudo mais arrumadinho!

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