Alerta: o texto de hoje é longo e confuso porque o texto de hoje sou eu.
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Faz alguns meses, eu fui convidada para dar um curso de Shaping e Agility em Recife. Eu estava em casa quando desliguei o telefone depois de conversar com o organizador sobre as inúmeras possibilidades para um curso desse. Quando desliguei, empolgadíssima, olhei para a Kia. Minha filhota estava com um ano de idade e sequer sabia deitar sob comando. Ela havia visto um túnel duas vezes na vida e as primeiras tentativas de ensinar as bases do salto haviam sido desastrosas. Pensei na Dory, a única cachorra com quem tive algum resultado em pista e que nem foi treinada por mim. Meu estômago deu um nó. Meu deus. O quê que eu vou fazer lá?
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É engraçado olhar pra trás e perceber quantas coisas já estavam presentes desde sempre e demoramos tanto tempo para notar. Pensando agora, eu não me lembro de um período na minha vida em que aprendizagem e ensino não fossem os meus temas favoritos. Vasculhando a infância, os hobbies, a escolha profissional, eu vejo que esses interesses sempre estavam lá, guiando minha trajetória.
Durante toda essa jornada, de lá até hoje, dediquei a maior parte do meu tempo a entender como a interação entre organismo e ambiente produziam todos os diferentes comportamentos que vemos nos seres vivos. Dos problemas de comportamento ao desempenho de alta performance, dos hábitos saudáveis ao sofrimento psicológico. De todas as coisas que descobri, teve uma que mudou totalmente tudo que eu havia aprendido até então e que continua fazendo isso até hoje. Eu descobri, numa conversa despretenciosa com veteranos, que olhar, observar, é treinado como qualquer outro comportamento. Observação também é aprendida.
Pare para pensar um pouco no que isso significa. Para a maioria dos humanos, olhar é um comportamento tão básico que media praticamente todos os outros. Nós não sabemos como comer, como interagir com as pessoas, nem como andar na nossa própria casa se não pudermos nos basear no que estamos vendo. O ver não é algo automático, que vem de fábrica quando temos olhos funcionais, como a câmera de um celular. Onde olhamos, no que focamos, o que percebemos, todos esses são comportamentos, que são treinados a partir de reforço, que podem ser punidos, ou sofrer extinção, como qualquer outro comportamento.
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A parte mais ansiogênica de ministrar um curso é se imaginar lidando com as dificuldades que inevitavelmente irão surgir durante os exercícios práticos. E se surgirem as mesmas dificuldades que eu tenho com os meus cães? E se surgir algo que eu não sei como lidar? Eles vão me descobrir.
Eu coloquei toda teoria debaixo do braço para me proteger e fui. Fui para um dos melhores finais de semana que o agility já me proporcionou.
A primeira coisa linda que me aconteceu foi chegar e encontrar um grupo de pessoas que estava totalmente aberto e ávido para ouvir o que eu tinha a dizer. Ninguém estava ali para me avaliar, estavam ali para me ouvir e a parte de mim que temia ser percebida como impostora desapareceu. E, nesse ambiente de tanta abertura e confiança, pude vivenciar aquilo que, pra mim, faz o ensinar ser algo tão indescritível. A oportunidade de abandonar o meu olhar já enviesado, já viciado pelo meu contexto de vida, pelas minhas dificuldades e pela minha realidade e poder aprender tudo de novo, poder olhar para aquilo que eu achava que já sabia de um ponto de vista completamente diferente.
Existe algo de muito especial em aprender a partir do ensinar. Que alguém abaixe as defesas e divida o desconforto do processo com você, que te permita compartilhar o olhar de um ângulo que você jamais teria acesso, não sei se existe demonstração maior de confiança do que essa.
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Uma lição se destacou dentre todas as outras. Enquanto as duplas iam praticando, eu estava livre para olhar. Sem conhecer nenhum contexto, sem me embaralhar nos invariáveis conflitos do processo de treino, eu conseguia observar claramente o que cada cão estava vendo, a que estímulos ele estava respondendo. Assim também, eu conseguia ver os condutores, reagindo sob controle de tantas outras coisas, tentando fechar várias equações e processar toda a informação enquanto o treino rolava.
A parte mais estranha foi me perceber tantas vezes nesses condutores mas, estando muito mais atenta aos cães, sugerir e propor estratégias e soluções que eu mesma não costumava usar em meus treinos. Durante os dois dias de curso, o que eu mais fiz foi sugerir aos condutores que observassem seus cães, olhassem o exercício pela perspectiva deles, que processassem todas essas informações e consolidassem o planejamento antes de treinar. Enquanto eu explicava isso, havia uma voz no fundo da minha cabeça que estava maravilhada, como se estivesse relembrando algo esquecido há muito tempo. Caramba. Pode crer.
Ás vezes, nos afogamos na nossa própria confusão. Nos tornamos incapazes de fazer, ou de resolver o problema, porque estamos tão imersos na correria do dia-a-dia, nos 150 vídeos que vimos no youtube, na pressa de estrear e, principalmente, tentando planejar nosso treino enquanto estamos nele. Ahnnn, tá, não tava esperando isso, o quê que eu faço agora?
Nessas horas, esquecemos que o quê realmente precisamos não são mais métodos, mais soluções, mais ideias, mais vídeos. O que realmente precisamos é parar. Parar e pensar o quê estamos tentando ensinar e parar e olhar o quê o nosso cão está vendo. A verdade é que a solução tem que estar na nossa cara, afinal, ela tem que ser tão simples que até o nosso cão vai entender. O complicado mesmo é conseguir se desvencilhar de toda essa poluição mental e parar até encontrar. É um exercício da vida real de Onde está o Wally?
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O objetivo desse texto quando eu comecei a escrevê-lo era falar sobre o que eu pude reaprender durante o final de semana do curso. Porém, senti tanta necessidade de poder contar o quão especial foi essa experiência que mal ficou espaço para falar de agility. Ou talvez, essa seja a primeira vez, em muito tempo, em que eu falo daquilo que realmente é o agility.
Deixo aqui hoje, desse meu jeito confuso e caótico, a gratidão que sinto por poder aprender as coisas que são importantes várias vezes, por encontrar pessoas sensacionais que me ensinem tudo de novo e de um jeito novo.
É bom estar de volta.
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Muito obrigada, pessoal! Foto por Hugo Vanderlei |